segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

PARA MARIA DA GRAÇA
 Agora, que chegaste à idade avançada de quinze anos, Maria da Graça, eu te dou este livro: Alice no País das Maravilhas. Este livro é doido, Maria. Isto é: o sentido dele está em ti. Escute se não descobrires um sentido na loucura acabarás louca. Aprende, pois, logo de saída para a grande vida, a ler este livro como um simples manual do sentido evidente de todas as coisas. Inclusive as loucas. Aprende isso a teu modo, pois te dou apenas umas poucas chaves entre milhares que abrem as portas da realidade. A realidade, Maria, é louca. Nem o Papa, ninguém no mundo, pode responder sem pestanejar à pergunta que Alice faz à gatinha: “ Fala a verdade, Dinah, já comeste um morcego?”.
Não te espantes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou pior, isso acontece muitas vezes por ano. “Quem sou eu no mundo? Essa indagação perplexa é o lugar comum de cada história da gente. Quantas vezes mais decifrares essa charada, tão entranhada em ti mesma como os teus ossos, mais forte ficarás. Não importa qual seja a resposta, o importante é dar ou inventar uma resposta. Ainda que seja mentira. A sozinhez (esquece essa palavra que inventei agora sem querer) é inevitável. Foi o que Alice falou no fundo do poço: “Estou tão cansada de estar aqui sozinha!” O importante é que ela conseguiu sair de lá, abrindo a porta. A porta do poço! Só as criaturas humanas (nem mesmo os grandes macacos e os cães amestrados) conseguem abrir uma porta bem fechada, e vice-versa, isto é, fechar uma porta bem aberta.
 Somos todos tão bobos, Maria. Praticamos uma ação trivial e temos a presunção petulante de esperar dela grande consequências. Quando Alice comeu o bolo e ão cresceu de tamanho, ficou no maior dos espantos. Apesar de ser isso o que acontece, geralmente, às pessoas que comem bolo. Maria, há uma sabedoria social ou de bolso, nem toda sabedoria tem de ser grave. A gente vive errando em relação ao próximo e o jeito é pedir desculpas sete vezes por dia: “Oh, I beg your pardon!” Pois viver é falar de corda em casa de enforcado. Por isso te digo, para a tua sabedoria de bolso: se gostas de gato, experimenta o ponto de vista do rato. Foi o que o rato perguntou à Alice: Gostarias de gatos se fosses eu?
Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, nos negócios, na política, nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na literatura, até amigos, até irmãos, até marido e mulher, até namorados, todos vivem apostando corrida. São competições tão confusas, tão cheias de truques, tão desnecessárias, tão fingindo que não é, tão ridículas muitas vezes, por caminhos tão escondidos, que, quando os atletas chegam exaustos a um ponto, costumam perguntar: “ A corrida terminou! Mas quem ganhou?” É bobice, Maria da Graça, disputar uma corrida se a gente não irá saber quem venceu. Se tiveres de ir a algum lugar, não te preocupe a vaidade fatigante de ser a primeira a chegar. Se chegares sempre aonde quiseres, ganhaste.
 Disse o ratinho: “Minha história é longa e triste!” Ouvirás isso milhares de vezes. Como ouvirás a terrível variante: “Minha vida daria um romance”. Ora, como todas as vidas até o fim são longas e tristes, e como todas as vidas dariam romances, pois o romance é só o jeito de contar uma vida, foge, polida mas energicamente, dos homens e das mulheres que suspiram e dizem: “Minha vida daria um romance!” Sobretudo dos homens. Uns chatos irremediáveis, Maria. Os milagres sempre acontecem na vida de cada um e na vida de todos. Mas, ao contrário do que se pensa, os melhores e mais fundos milagres não acontecem de repente, mas devagar, muito devagar.
 Quero dizer o seguinte: a palavra depressão cairá de moda mais cedo ou mais tarde. Como talvez seja mais tarde, prepara-te para a visita do monstro, e não te desespere ao triste pensamento de Alice: “Devo estar diminuindo de novo”. Em algum lugar há cogumelos que nos fazem crescer novamente. E escuta esta parábola perfeita: Alice tinha diminuido tanto de tamanho que tomou um camundongo por hipopótamo. Isso acontece muito, Mariazinha. Mas não sejamos ingênuos, pois o contrário também acontece. E é um outro escritor inglês que nos fala mais ou menos assim: o camudongo que expulsamos ontem passou a ser hoje um terrível rinoceronte. É isso mesmo, a alma da gente é uma máquina complicada que produz a vida uma quantidade imensa de camundongos que parecem hipopótamos e de rinocerontes que parecem camundongos. O jeito é rir no caso da primeira confusão e ficar bem disposto para enfrentar o rinoceronte que entrou em nossos domínios disfarçados de camundongos. E como tomar o pequeno por grande e o grande por pequeno é sempre meio cômico, nunca devemos perder o bom humor.
Toda pessoa deve ter três caixas para guardar humor: uma caixa grande para o humor mais ou menos barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para o humor que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma; por fim, uma caixinha preciosa, muito escondida, para as grandes ocasiões. Chamo de grandes ocasiões os momentos perigosos em que estamos cheios de dor ou de vaidade, em que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triunfamos, em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cuidado, Maria, com as grandes ocasiões.
Por fim, mais uma palavra de bolso: às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao sofrimento, com uma tal complacência, que tem medo de não poder sair de lá. A dor também tem o seu feitiço, e este se vira contra o enfeitiçado. Por isso Alice, depois de ter chorado um lago, pensava: “agora serei castigada, afogando-me em minhas próprias lágrimas”.  Conclusão: a própria dor deve ter a sua medida: É feio, é imodesto, é vão, é perigoso ultrapassarmos a fronteira de nossa dor. Maria da Graça.
 ( In Filosofando, Arruda e Martins, Moderna 

Filosofia a procura da verdade

A FILOSOFIA COMO PROCURA DA VERDADE Em seu pequeno e brilhante livro Introdução à Filosofia, Jasper insiste na ideia de que a essência da filosofia é a procura do saber e não a sua posse. Todavia, ela se trai a si mesma quando degenera em dogmatismo. Isto é, num saber posto em fórmula, definitivo, composto. Fazer filosofia é estar a caminho; as perguntas em filosofia são mais essenciais que as respostas, e cada resposta transforma-se numa nova pergunta. Há então, na pesquisa filosófica uma humildade autêntica que se opõe ao orgulhoso dogmatismo do fanático: o fanático está certo de possuir a verdade. Assim sendo, ele não tem mais necessidade de pesquisar e sucumbe à tentação de impor sua verdade a outrem. Acreditando estar com a verdade, ele não tem mais o cuidado de se tornar verdadeiro; a verdade é seu bem, sua propriedade, enquanto para o filósofo é uma exigência. No caso do fanático, a busca da verdade degradou-se na ilusão da posse de uma certeza. Ele se acredita o proprietário da certeza, ao passo que o filósofo esforça-se por ser peregrino da verdade. A humildade filosófica consiste em dizer que a verdade não pertence mais a mim que a ti, mas que ela está diante de nós. Assim, a consciência filosófica não é uma consciência feliz, satisfeita com a posse de um saber absoluto, nem uma consciência infeliz, presa das torturas de um ceticismo irremediável. Ela é uma consciência inquieta, insatisfeita com o que possui, mas a procura de uma verdade para a qual se sente talhada.


PELA ÉTICA NO TRABALHO

Um pais que exclui, que não se organiza para propiciar trabalho, emprego, renda para todos os seus habitantes, não é ético, é perverso. Uma economia que não integra todas as pessoas não é ética. Uma sociedade que só oferece possibilidades de trabalho normal, regular, remunerado para uma minoria e que deixa a maioria à margem, à míngua, não é democrática; é imoral.
Depois de tantos anos do chamado “desenvolvimento”, percebemos que o Brasil é um paraíso para uma minoria, um purgatório para a maioria e um inferno para 20% de seu povo. E tudo isso porque exclui do trabalho, do emprego, da renda e da terra a maior parte de sua própria população.
A Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida, depois de mobilizar o conjunto da sociedade para se confrontar com o problema da fome, depois de distribuir alimentos para muita gente, depois de se organizar em milhares de comitês e, principalmente, de despertar uma grande onda de solidariedade humana como jamais se viu entre nós, está desafiada a dar um passo à frente no processo de mudança do país.
Para erradicar a miséria é fundamental repensar toda a economia, reorganizar toda a política, transformar toda a nossa cultura, para chegarmos a um país onde todas as pessoas tenham trabalho e possam viver dignamente de seus salários, possam comer segundo suas necessidades e preferências, educar seus filhos e garantir saúde e segurança para todos os membros de sua família. É fundamental dar um passo à frente em direção ao trabalho. Em sua primeira fase, a da solidariedade contra a fome, a campanha teve de enfrentar muitas dúvidas e críticas: “Distribuir comida é assistencialismo” diziam. Não resolve, não leva a nada”, afirmavam. “O fundamental é ensinar a pescar e não dar o peixe”, filosofavam, enquanto aguardavam as reformas estruturais que, estas sim, prometem o fim da miséria. Mas, não se perguntavam se a sociedade estava disposta a compartir o que tinha, se cada um queria cuidar de si ou de todos. Se queriamos ser uma nação ou um bando de gente cuidando da própria sobrevivência.
A campanha demonstrou que é possível distinguir assistencialismo de solidariedade humana. Que para pescar é preciso estar vivo. Que a solidariedade humana é fundamental na emergência dos que morrem de fome enquanto aguardam a materialização das propostas de mudanças de estruturas. E essas reformas estruturais só acontecem quando as mudanças do dia a dia ocorrem pela ação das pessoas de todas as pessoas. Mais do que isso, a campanha ganhou a alma e a mão da população brasileira, abrindo as duas para a solidariedade. Agora estamos diante de um desafio maior. Não somente distribuir comida, mas dar trabalho, inventar emprego, integrar todas as pessoas em atividades remuneradas. Com salário, cada um pode começar a exercer minimamente sua cidadania. E vamos reproduzir o sucesso da primeira fase da campanha. A maioria aprovou e participou da campanha. A maioria agora vai mudar o rumo do Brasil pela via do trabalho.
Vamos questionar tudo principalmente o rumo que nos levou à miséria, a esse apartheid social que se chama “Brasil”. Vamos questionar a política econômica dos governos federais, estaduais e municipais: quantos empregos irão gerar? Quantas pessoas irão começar a trabalhar? Quantos empregos o governo Itamar vai gerar em 1994? Essa é uma questão crucial. Que contribuição efetiva darão os ministérios, principalmente o da Fazenda? Quantos empregos as 4794 prefeituras do país irão gerar? Os governadores e todos os seus secretários? Os grandes, médios e pequenos empresários? A FIESP, o PNBE, O Simpi, o Sebrae, a CNI? E os empresários agrícolas? Os detentores dos 100 milhões de hectares de terras ociosas? Quantos empregos a terra pode.............................................................................................................................................cima, dos governos, das instituições da chamada “estrutura”, apontada como a causa de toso os males e soluções.
Mas existe uma outra mudança, outra resposta que virá da sociedade como os milhares de comitês da campanha poderão contribuir para a geração de empregos? Como as pessoas comuns poderão gerar novas oportunidades de trabalho para o comum das pessoas? Essa é a grande questão dessa fase da campanha e o caminhos seguro de seu sucesso. A solução da primeira etapa veio da planície, com participação do Planalto. O sucesso da segunda etapa também virá da sociedade. Gente é que gera emprego para gente. Gente é que gera trabalho para as pessoas. A sociedade é que muda o rumo das polítcas do Estado e inventa novos modos de sua própria existência. A economia na verdade é a soma ou a divisão de todos nós. Nessa campanha aprendemos a somar e a integrar contra uma economia que se especializou em dividir e excluir.
Neste ano teremos uma eleição quase geral. Vamos perguntar a todos os candidatos, a todos os níveis, que propostas eles têm para gerar emprego, criar trabalho, distribuir renda, democratizar a terra. Cada comitê vai se transformar em um grupo de pressão, de pergunta, de mudança.
O Brasil poderá transformar 1994 no ano da mudança. De um país de uns poucos para o Brasil de todos, vivendo e trabalhando para viver com dignidade, com ética, com cidadania.
( C arla Rodrigues: Hebert de Souza. Etica e cidadania. São Paulo: Moderna, 1994.)

A DITADURA DO RELÓGIO

A DITADURA DO RELÓGIO
Não há nada que diferencie tanto a sociedade ocidental de nossos dias das sociedade mais antigas da Europa e do Oriente que o conceito de tempo. Tanto para os antigos gregos  e chineses quanto para os nômades árabes ou o peão mexicano de hoje, o tempo é representado pelos processos cíclicos da natureza, por sucessão dos dias e das noites, pelas passagens das estações. Os nômades e os fazendeiros costumam medir, e ainda hoje o fazem, seu dia do amanhecer até o crepúsculo e os anos em termos de tempo de plantar e de colher, das folhas que caem e do gelo derretido nos lagos  e rios. O  homem do campo trabalhava em harmonia com os elementos, como um artesão, durante tanto tempo quanto o julgasse necessário.  O tempo era visto como um processo natural de mudança e os homens não se preocupavam em medi-lo com exatidão. Por essa razão, civilizações que eram altamente desenvolvidas sob outros aspectos dispunham de meios bastante primitivos para medir o tempo: a ampulheta  cheia que escorria, o relógio de sol, inútil num dia sombrio, a vela ou lâmpada onde o resto de óleo ou cera que permanecia sem queimar indicava as horas.
O homem ocidental civilizado, entretanto, vive num mundo que gira de acordo com os símbolos mecânicos e matemáticos das horas marcadas pelo relógio. É ele quem vai determinar seus movimentos e dificultar suas ações. O relógio transformou o tempo, transformando-o de um processo natural em uma mercadoria que pode ser comprada, vendida e medida como um sabonete ou um punhado de passas de uvas. E, pelo simples fato de que, se não houvesse um meio para marcar as horas com exatidão, o capitalismo industrial nunca poderia ter se desenvolvido, nem teria continuado a explorar os trabalhadores, o relógio representa um elemento de ditadura mecânica na vida do homem moderno, mais poderoso do que qualquer outro explorador ou do que qualquer outra máquina.
(...) A princípio, esta nova atitude em relação ao tempo, este novo ritmo imposto à vida foi ordenado pelos patrões, senhores dos relógios,  e os pobres o recebiam a contragosto. E o escravo da fábrica reagia, nas horas de folga, vivendo na caótica irregularidade que caracterizava os cortiços encharcados de gim dos bairros pobres no início da era industrial do século XIX.  Os homens se refugiavam no mundo sem hora marcada da bebida e do culto metodista. Mas aos poucos a ideia da regularidade espalhou-se,  chegando aos operários. A religião e a moral do século XIX  desempenharam seu papel, ajudando a proclamar que “perder  tempo” era um pecado. A introdução dos relógios fabricados em massa a partir de 1850, dinfundiu a preocupação com o tempo entre aqueles que antes se haviam limitado a reagir ao estímulo do despertador ou à sirene da fábrica. Na Igreja e na escola, nos escritórios e nas fábricas, à pontualidade passou a ser considerada como a maior das virtudes.
E desta dependência servil ao tempo marcado nos relógios, que se espalhou insidiosamente por todas as classes sociais no século XIX, surgiu a arregimentação desmoralizante que ainda hoje caracteriza a rotina das fábricas. 
O homem que não conseguir ajustar-se deve enfrentar a desaprovação da sociedade e a ruina econômica, a menos que abandone tudo, passando a ser um dissidente para o qual o tempo deixa de ser importante.  Refeições  feitas as pressas, a disputa de todas as manhãs e de tarde por um lugar nos trens e nos ônibus, a tensão de trabalhar obedecendo horários, tudo isso contribui, pelos distúrbios digestivos e nervosos que provoca, para arruinar  a saúde e encurtar a vida dos homens.
(...) O operário transformou-se, por sua vez, num especialista em “olhar o relógio”, preocupado apenas em saber quando poderá escapar para gozar as suas escassas e monótonas formas de lazer que a sociedade industrial lhe proporcionará, onde ele, para “matar o tempo’, programará tantas atividades mecânicas com tempo marcado, como ir ao cinema, ouvir rádio e ler jornais, quanto permitir o seu salário e o seu cansaço. Só quando se dispõe a viver em harmonia com sua fé ou com sua inteligência é que o homem sem dinheiro consegue deixar de ser um escravo do relógio.

(G. Woodcodk. A rejeição da política, in filosofando, ARANHA E MARTINS. São Paulo: Moderna, 1998).