quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

A GRANDE INVENÇÃO GREGA


Não vou lhe ocultar que desde o começo a invenção democrática teve sérios adversários, tanto no campo teórico, como no prático. A verdade é que a democracia se baseia num paradoxo, que fica evidente ao se refletir um pouco sobre o assunto: todos nós conhecemos mais pessoas ignorantes do que sábias e mais pessoas más do que boas … portanto é lógico supor que a decisão da maioria terá mais ignorância e maldade do que o contrário. Os inimigos da democracia insistiram desde o primeiro momento em que confiar nos muitos é confiar nos pobres (…) A maioria se engana com facilidade, qualquer sofista ou demagogo que diz palavras bonitas é mais ouvido do que pessoas razoável, que aponta defeitos e problemas. E a quem não engana se compra, porque o vulgo só quer saber de dinheiro e de diversões. Etc, etc….

Suponho que muitas dessas objeções antidemocráticas (todas, atrevo-me a dizer), você já conhece. Você as ouve serem formuladas todos os dias contra o modesto regime democrático em que vive. Não creia que são coisas de hoje, bem ora os que a dizem agora suponham ter feito uma grande descoberta.

Na realidade, são tão velhas quanto a própria democracia. É com razão, porque a invenção da democracia é demasiado revolucionária para ser aceita sem escândalo …. Já não digo no século V antes de Cristo, mesmo em fins do século XX! O natural é que mandem os mais fortes, os mais espertos, os mais ricos, os de melhor família, os que pensam mais profundamente ou estudaram mais, os melhores, os mais santos, os generosos, os que têm ideias geniais para salvar os outros, os justos, os puros, os astutos, os ….. os que você quiser, mas não todos! É verdade que o poder seja coisa de todos, que todos intervenham, falem, votem, elejam, decidam, tenham ocasião de se enganar, tentem enganar ou permitam que os enganem, protestem, se metam …. isto não é coisa natural, mas um invento artificial, uma aposta desconcertante contra a natureza e os deuses. Isto é uma obra de arte. Os gregos foram grandes artistas, a democracia foi a obra-prima de sua arte, a mais arriscada e inverossímil, a mais discutida: a invenção de que cada um tem direito na comunidade, de que ninguém tem o dever de acertar ou errar por si mesmo, de ser responsável – ainda que minimamente – pelos sucesso e desastres que lhe concedam (….).

O invento democrático, esse círculo em cujo cento estava o poder, essa assembleia de vozes e discussões, teve como consequência que os cidadãos, os submetidos a isonomia, à mesma lei, se vissem uns aos outros. As sociedades democráticas são mais transparentes do que as outras (….) Nas sociedades de tipo piramidal, cada grupo social não conhecia o gênero de vida que os superiores levavam e não se atreviam a julgar suas virtudes e seus vícios, com os mesmos critérios aplicados aos de sua classe. Já entre os gregos, cada um estava à mercê dos demais: as habilidades e os méritos não eram tidos como ponto pacífico em ninguém, tnham de ser mostrados …. e demonstrados (….) As fraquezas e os vícios também eram coisas de domínio público.

(SVATER, Fernando. Política para meu filho. São Paulo: Martins Fontes, 1996. n Filosofando, Aranha e Martins, editora moderna ).